Desde 2017, os povos indígenas da região do Alto Rio Negro, na Amazônia, usam uma nova ferramenta para defender seu território: a notícia.
A partir de sua sede em São Gabriel da Cachoeira - o município mais indígena do Brasil - o canal de notícias Rede Wayuri transmite informações em vários idiomas nativos para os 23 diferentes povos indígenas espalhados por 750 comunidades da região. Wayuri, cujo nome significa ‘trabalho coletivo’ na língua indígena nheengatu, já compartilhou informações críticas sobre a prevenção da disseminação da COVID-19 e relatou o impacto catastrófico das mudanças climáticas em todos os territórios indígenas. Mas, mais do que tudo, ao produzir notícias de territórios indígenas sobre povos indígenas e para públicos indígenas, a Wayuri mobilizou comunidades indígenas na proteção de seus próprios direitos e territórios.
Quando a Wayuri foi criada em 2017, os povos indígenas da região estavam sendo inundados com campanhas de desinformação nas redes sociais, incentivando-os a abrir seus territórios protegidos à mineração, disse Ray Baniwa, um dos fundadores do veículo. As campanhas, que promoviam a ideia de que as tribos da região se tornariam ricas com a chegada da mineração, foram efetivas dentro dos territórios indígenas. Eles costuraram uma desconfiança generalizada dos líderes comunitários e do principal grupo de direitos indígenas da região, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), disse Baniwa.
“Muita gente caiu nesse discurso, aquelas falas que empolgam, animam o pessoal, porque elas acham que é a verdade”, disse Baniwa. “Esse enfraquecimento, essa crise que a gente estava vivendo nessa época, fez com que as lideranças pedissem para FOIRN para que buscassem uma forma de dar resposta, de combater essa desinformação que estava circulando no território, de fazer contra-narrativa”.
Wayuri estabeleceu um público notavelmente amplo em todo o Alto Rio Negro e, ao fazê-lo, conseguiu reconstruir o apoio ao movimento indígena entre as comunidades indígenas da região. Em São Gabriel da Cachoeira, muitos dos motoristas de táxi ouvem Wayuri, enquanto Juliana Radler, outra fundadora da Wayuri, estima que 70% da população indígena de 45 mil pessoas na região tem acesso e conhece o veículo.
A Wayuri, que conta com uma parceria com a ONG Instituto Socioambiental e apoio financeiro de benfeitores, incluindo a União Europeia, tem uma ampla rede de correspondentes de comunidades indígenas em toda a região do Alto Rio Negro. Eles fazem reportagens de seus próprios territórios, enviando notícias para a redação centralizada em São Gabriel da Cachoeira, que compila as informações em forma de boletins de áudio ou programas de rádio. Essas informações são então distribuídas por toda a região via WhatsApp, rádio ou bluetooth.
Muitos dos correspondentes são jovens, que recebem formação no jornalismo através de oficinas periódicas em São Gabriel da Cachoeira. Através de seu trabalho com a Rede Wayuri, eles se envolveram ativamente na proteção dos direitos indígenas.
O movimento indígena estava um pouco distante da juventude e uma juventude que não estava mais tão próxima dessa geração que lutou pela demarcação”, disse Radler. “Então, um grupo ficou ali muito unido e trocando informação, e isso ajudou muito também a disseminar, as lutas, a renovar também a imagem da FOIRN no território”.
A cobertura da Wayuri incluiu explicar o Plano de Gestão Territorial e Ambiental da região - um documento crucial que orienta a gestão sustentável e a proteção de cada território indígena no Brasil - destacando a cultura indígena local, fornecendo atualizações sobre como a legislação estadual e federal afeta os direitos indígenas e entrevistando candidatos para eleições locais.
Mas talvez a reportagem mais crítica de Wayuri tenha sido sobre saúde pública. Durante o auge da pandemia de COVID-19, que causou grandes estragos no estado do Amazonas, a Rede Wayuri aumentou sua frequência de publicação, enviando instruções críticas de distanciamento social e gravando entrevistas com especialistas em saúde pública. A linguagem científica e médica em torno da pandemia era difícil para as pessoas entenderem, disse Claudia Wanano, editora da Wayuri, então compartilhar as informações em termos familiares para os ouvintes era fundamental. O título de um boletim de áudio, por exemplo, dizia aos ouvintes para ficarem do tamanho de um pirarucu, um peixe gigante da Amazônia, longe dos outros. A Wayuri também transmitiu as informações em várias línguas indígenas. “Levando essas informações assim nas línguas, eu vejo que elas ficam bem mais esclarecidas”, disse Wanano.
Ao contrário de iniciativas anteriores de comunicação indígena no Brasil, que se concentraram principalmente em informar o público não indígena sobre a cultura e os direitos indígenas, a Wayuri fornece informações explicitamente para o público indígena. Essa missão tornou-se crítica nos últimos anos, dada a chegada da Internet - em grande parte através da Starlink - aos territórios indígenas e, com ela, um dilúvio de notícias falsas.
“A gente quer fortalecer nossa narrativa dentro do nosso próprio território, a partir das vozes desse território”, disse Baniwa. “A gente enfrentou esse governo passado, onde chegava fake news todo dia, então a gente meio que foi uma barreira para tentar conter e combater essa informação”.
Para Gave Cabral, presidente da organização de educação midiática Abaré, com sede em Manaus, que realiza oficinas com a Wayuri, o veículo indígena é uma “dose de esperança” para o jornalismo. Cabral disse que o ambiente midiático na Amazônia é extremamente concentrado nas grandes cidades, e há pouquíssima cobertura das áreas rurais, onde as narrativas costumam ser dominadas por políticos locais.
“Quando surge uma iniciativa como a Rede Wayuri, eu acho que é um respiro e dá para dizer: ‘Poxa, a gente ainda não está com tudo perdido, ainda tem uma esperança de que é possível fazer comunicação no interior do Amazonas, apesar de todas essas dificuldades econômicas, logísticas, políticas’”, disse Cabral.
Embora grande parte do jornalismo tradicional pareça estar em crise, a Wayuri representa o tipo de iniciativa de comunicação de base que está crescendo, disse Cabral. “Não é sobre isso quando a gente fala em crise. Não tem crise para o jornalismo popular, para o jornalismo comunitário. Eles, na verdade, são a solução para esse jornalismo”.
Parte do sucesso da Wayuri vem do fato de os próprios jornalistas serem membros das comunidades indígenas do Alto Rio Negro. “É importante, nós mesmos, divulgando as informações, nós indígenas mesmo porque houve jornalistas de fora que vêm e trazem informações que eles não compreendem”, disse Wanano. “Acaba prejudicando a nossa imagem dos povos e da região de nós mesmos”.
Os jornalistas da Wayuri, dada a sua compreensão pessoal das comunidades indígenas da região, também sabem como se comunicar melhor com seu público. “A gente sempre fala essa linguagem mais local, regional, essa linguagem dos povos indígenas”, disse Wanano. “A gente tenta levar essas informações e não deixa essa parte cultural, do jeito de falar, de narrar, de contar”.
Falando ao seu público em termos familiares e línguas maternas, Wayuri rapidamente estabeleceu a confiança entre as comunidades da região, o que é necessário para combater eficazmente as notícias falsas e disseminar informações críticas. Também inspirou a criação de várias outras organizações e coletivos de comunicação indígena na Amazônia, tornando-se um modelo de uso da informação para defender a soberania e o território indígena. “A missão da rede dos comunicadores é isso - combater realmente essa questão das mentiras, das notícias falsas, de tentar esclarecer, mas levando assim no nosso próprio jeito de comunicar”, disse Wanano.